CB, Opinião, p. 15
Autor: SANTILLI, Márcio
06 de Jun de 2013
Confiança traída
Márcio Santilli
Coordenador de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). Formado em Filosofia, foi deputado federal pelo PMDB-SP (1983-1986) e presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre 1995 e 1996.
Há no Brasil parques e reservas de vários tipos, que se destinam a usos mais diretos e específicos, como o extrativismo florestal, ou a usos mais s, de preservação, realização de pesquisas, ando pela promoção da educação ambiental e a visitação, todas contribuindo para a proteção da floresta, da biodiversidade, dos solos, das nascentes de água e das condições do clima. Essas áreas podem ser criadas e geridas pela União, estados ou municípios.
Os parques nacionais são os mais conhecidos entre as unidades de conservação de uso , também chamadas de proteção integral, categoria que inclui as estações ecológicas e as reservas biológicas. São figuras jurídicas incompatíveis com populações residentes, mas o poder público, em muitos casos, aplicou-as, formalizando novas áreas, em terras ocupadas por índios, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos, gerando conflitos quanto ao uso dos recursos naturais.
Por exemplo, a roça de coivara é parte da cultura tradicional de subsistência dessas comunidades, mas o corte e a queima não são itidos nessas unidades de conservação. Agentes públicos chegam a dificultar e punir a abertura dessas roças, embora ela ocorra há séculos sem prejuízo às condições naturais dessas áreas, porque restritas a pequenas extensões, e com o desenvolvimento de novas espécies de valor cultural.
Existem 45 parques e outras unidades federais de proteção integral com comunidades tradicionais vivendo em seu interior. Sobreposições com terras indígenas e quilombos devem ser suprimidas com correções de limites, ou haverá convivência de funções, mantida a dupla afetação. Nos casos que envolvem outras populações tradicionais, pode-se resolver a situação por meio da reclassificação ou desafetação de parte da área, mas também há situações em que é inevitável retirar os ocupantes e reassentá-los em outro local.
Nos últimos anos, negociações entre gestores públicos e comunidades permitiram a construção de sete planos de solução definitiva dos conflitos por alterações de limites ou a reclassificação de parte dessas áreas em figuras jurídicas compatíveis. Essas alternativas estão à disposição do Ministério do Meio Ambiente (MMA) há vários meses, mas não houve providência.
Nos casos de sobreposição com quilombos, uma câmara de conciliação constituída na Advocacia-Geral da União (AGU) tem recomendado a formalização de termos de compromisso entre as partes. O MMA determinou, porém, a suspensão do acordo para resolver a sobreposição entre o Parque Nacional de Aparados da Serra (RS/SC) e o Quilombo São Roque, que já havia sido assinado pelo presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão das unidades de conservação federais. O MMA também suspendeu negociações com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para solucionar conflitos similares com os quilombos de Mata Escura (MG), Trombetas (PA), Jaú (AM) e Cabo Orange (AP).
Mesmo em casos de reassentamento, a norma do ICMBio é estabelecer termos de compromisso com os ocupantes até que eles sejam reassentados, para que possam realizar atividades essenciais à sua subsistência de forma adequada. Quatro acordos do tipo, assinados e publicados no Diário Oficial, e vários outros procedimentos istrativos que estavam em curso também foram suspensos por determinação superior.
Pendências históricas entre comunidades tradicionais e autoridades ambientais já deram espaço para muitos conflitos no ado. Foi preciso muito esforço político e desprendimento de lideranças comunitárias e gestores para que as propostas de superação de conflitos fossem construídas e pactuadas nos últimos anos. Ao abandoná-las de forma unilateral e injustificada, o governo traiu a confiança dos que se dispam ao diálogo e à construção de soluções justas.
É previsível que a suspensão de pactos legítimos provoque maior acirramento de conflitos que haviam sido virtualmente superados, num momento político tumultuado por crises e incidentes graves envolvendo populações tradicionais. Fica difícil entender como um governo tido e havido como popular e democrático assume a responsabilidade histórica de romper acordos e infernizar a vida de comunidades historicamente excluídas que vivem nos parques.
Correio Braziliense, 06/06/2013, Opinião, p. 15
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