OESP, Economia, p. B2
Autor: NOGUEIRA, Luiz Augusto Horta
04 de Dez de 2004
Biodiesel não é álcool
Luiz Augusto Horta Nogueira
Com a perspectiva de adoção do biodiesel no Brasil, tem sido sugerida sua analogia com o álcool de cana-de-açúcar, que depois de 25 anos de desenvolvimento superou a dependência do apoio governamental e hoje constitui um exemplo de sustentabilidade. Tal similaridade poderia orientar as ações do governo no fomento ao novo biocombustível, entretanto, existem semelhanças e diferenças.
Do ponto de vista do usuário, o biodiesel, corretamente especificado, pode ser usado pelos motores convencionais, sem adaptação, o que é uma vantagem relevante ante o álcool. Pelo lado da produção, o biodiesel é notavelmente mais complexo que o álcool. Enquanto a fermentação e a destilação são feitas há séculos, o processo de transesterificação, adotado para produzir biodiesel, desenvolveu-se apenas nas últimas décadas, envolvendo reações químicas e processos de separação sofisticados. A produção de álcool depende basicamente de matéria-prima agrícola, já o biodiesel requer o aporte de metanol, produto de manuseio perigoso. Existem estudos para substituir o metanol por etanol, contudo com resultados ainda limitados. O balanço energético mostra outra diferença importante: enquanto, no caso do álcool de cana, para cada unidade de energia investida se obtêm cerca de dez, para o biodiesel essa relação é pouco conhecida, aparentemente inferior a três para os cultivos anuais e cerca de seis para as palmáceas.
No âmbito das semelhanças, pode ser citada a crença de que estes biocombustíveis sejam panacéias para uma gama de problemas, que incluem a questão agrária. Isso ocorreu com o álcool quando se acreditava ser viável sua produção em microdestilarias e hoje a com o biodiesel, quando se espera que pequenos produtores sejam capazes de produzir seu próprio combustível. Pode ser que no futuro tal expectativa se viabilize, mas na atualidade nada assegura sua possibilidade. A produção de biocombustíveis, infelizmente, exige uma escala mínima de produção, boa produtividade agrícola e adequado nível tecnológico para garantir o atendimento às especificações impostas pelos motores modernos. Além disso, pretender distribuir renda simultaneamente à introdução de inovações tecnológicas desse calibre pode ser temerário. Outra interessante semelhança se refere à confusa proposição de matérias-primas, que com freqüência tem desconhecido as aptidões locais. Nos anos 70 se indicavam a mandioca, a batata-doce, o sorgo e a madeira para fazer álcool e, agora, se propõem quase todas as oleaginosas para o biodiesel, como se isso não influenciasse decididamente a viabilidade do processo. Parece evidente que cabem distintas opções regionais, mas palavra deve ser dada aos agrônomos e apenas um forte apoio à pesquisa nesse campo vai orientar um sólido programa de biodiesel. De todo modo, uma indicação interessante: as palmáceas, como o dendê, são mais produtivas que os cultivos anuais, permitem obter óleo mais barato, melhor para biodiesel, e subprodutos de interesse energético. Sobre matérias-primas e equívocos históricos em biocombustíveis, cabe lembrar a construção de uma destilaria de álcool de mandioca em Curvelo nos anos 80, cuja única utilidade foi mostrar a inviabilidade da rota adotada.
É no campo econômico que as diferenças entre o álcool e o biodiesel se acentuam. O álcool compete com a gasolina, o mais caro dos derivados, e o biodiesel visa a substituir um dos mais baratos e mais essenciais à economia. O álcool precisou de e durante anos para se viabilizar como combustível, mas num contexto de preços deprimidos do açúcar e capacidade ociosa nas usinas. Sempre que o mercado de açúcar se mostrou melhor, os usineiros pressionaram para redirecionar sua produção e, corretamente, faturar mais vendendo o produto mais caro. Ou seja, a decisão sobre o que produzir foi resolvida pelo mercado e todas as vezes que houve intervenção os resultados foram questionáveis. Com o biodiesel a proposta tem sido diferente. Não apenas é preciso viabilizar o uso de um combustível mais caro, o que não é nenhum absurdo em princípio, mas, paradoxalmente, queimar um produto com um atraente valor de mercado e deslocar um combustível de baixo preço. Se for levado em conta o custo de oportunidade da matéria-prima, como fica a viabilidade global do processo de substituição? É difícil entender, seria como se alguém recomendasse o plantio de madeira de lei para vender como lenha. Seria essa uma política de renda, de inclusão social? Seria uma política energética?
O biodiesel deve entrar na matriz energética brasileira por suas vantagens energéticas, ambientais e sociais. Que seja num marco de racionalidade, com um mínimo de consistência econômica e uma correta orientação tecnológica. Um país que construiu a história de sucesso do álcool não precisa cometer todos os erros de novo.
Luiz Augusto Horta Nogueira é professor da Universidade Federal de Itajubá
OESP, 04/12/2004, Economia, p. B2
As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.